Fragmentos de um Diário Íntimo
por Henri-Frédéric Amiel
Tradução de Mário D. Ferreira Santos, publicado como Diário Íntimo pela Ediouro

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Berlim, 16 de dezembro de 1847.

Pobre diário íntimo! Esperas há sete meses e em dezembro é que se aplica por primeira vez uma resolução de maio. Ou antes, pobre de mim! Não sou livre, porque não tenho a força de executar a minha vontade. Acabo de reler as minhas notas deste ano. Tudo foi visto, previsto, disse a mim mesmo as mais belas coisas, entrevi as mais sedutoras perspectivas, e, hoje, caí em mim, esqueci. Não é inteligência que me falta, é caráter. Quando me dirijo ao meu juiz interior, clara é a sua visão e ele me fala com justeza. Eu me adivinho, mas não me faço obedecer. E neste momento ainda, sinto que me causa prazer descobrir as minhas faltas e os seus motivos, sem que por isso me torne mais forte contra elas. Não sou livre. Quem deveria sê-lo mais do que eu? Nenhuma coação exterior, gozo de todo o meu tempo, senhor de oferecer-me um fim qualquer. — Mas de mim próprio fujo, semanas, meses inteiros; cedo aos caprichos do dia, sou o olhar de meus olhos.

Terrível pensamento: cada um faz o próprio destino.

Diziam os hindus: o destino não é uma palavra, mas a conseqüência das ações cometidas em outra vida. Excusado ir tão longe. Cada vida faz o próprio destino. — Por que és fraco? Porque dez mil vezes cedeste. Assim te tornaste o joguete das circunstâncias; foste tu que fizeste a sua força, não elas que fizeram a tua fraqueza.

Aos olhos de minha consciência acabo de fazer passar de novo toda minha vida interior: infância, colégio, família, adolescência, viagens, jogos, tendências, sofrimentos, prazeres, o bom e o mau. Tentei separar a parte da natureza e da liberdade; reconhecer na criança e no moço os lineamentos do ser atual. Vi-me em contato com as coisas, com os livros, com parente, irmãs, camaradas, amigos. São de velha data os males contra os quais eu luto. — É uma longa história, que eu devo escrever um dia. — Se o antagonismo é a condição do progresso, eu nasci para fazer progressos.

Não és livre, por quê? Porque não estás de acordo contigo próprio, porque enrubesces diante de ti mesmo; porque cedes às tuas curiosidades, aos teus desejos. O que mais te custa é renunciar à tua curiosidade.

Nasceste para ser livre, para realizar corajosa e plenamente a tua idéia.

Sabes que está nisso a paz. Equilíbrio, harmonia; saber, amar, querer; idéia, beleza, amor; viver da vontade de Deus, da vida eterna; estar em paz contigo mesmo, com o destino; sabes perfeitamente, reconheceste e sentiste muitas vezes que aí estava o teu dever, a tua natureza, a tua vocação, a tua felicidade. Mas abaixo do teu dever geral não precisaste bastante a tua vocação especial, ou antes, não acreditaste seriamente no resultado ao qual havias chegado; distraíste a ti próprio. Renunciar à distração, concentrar-te em tua vontade, num pensamento; eis o que tanto te custa.
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Exprimir, realizar, terminar, produzir: preocupa-te com este pensamento. É a arte. Encontra para cada coisa a sua forma. Que vá teu pensamento à sua conclusão, que a tua palavra exprima o teu pensamento; conclui as tuas frases, os teus gestos, as tuas leituras. Pensamento incompleto, meias palavras, conhecimento imperfeito, triste coisa. Isso equivale a dizer, precisar, circunscrever, esgotar, ou renunciar à curiosidade. Ordem, energia, perseverança, era o que em outro lugar eu dizia ser-me necessário.

Para a tua vida interior, o escolho é a dissipação. Perdes de vista a ti e aos teus planos, nada tens de mais interessante do que precisamento o não te interessa. Ora, ceder a esse indolência é dar uma força a mais ao tentador; é pecar contra tua liberdade, é encadear-se ante o porvir. A força física somente se adquire pelos exercícios graduados, contínuos e enérgicos.

Graduação, energia, continuidade, são igualmente as condições de vida intelectual e moral.
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De onde vem este defeito singular de escolher sempre o caminho mais longo, de preferir o menos importante ao mais importante, de ir ao menos urgente; este zelo do acessório, este horror à linha reta? De onde vem este prazer de, entre várias cartas para ler, começar pela menos interessante; dentre várias visitas, preferir a menos necessária; dentre vários estudos, escolher precisamente o que está mais fora do caminho natural; dentre várias compras, a menos urgente? Será apenas a tendência a comer seu pão negro, em primeiro lugar? Um refinamento de gosto? Será o desejo do completo, a pressa em aproveitar a ocasião que pode fugir, o necessário devendo sempre vir? Belo zelo. Ou então maneira de iludir o dever, engenhosa velhacaria para adiar o que importa e o que ordinariamente é o mais fatigante; astúcia do eu indócil e preguiçoso? Ou será irresolução, falta de coragem, transferência do esforço para outra vez?

As duas últimas explicações que se fundem numa só, parecem-me a verdadeira. "Tempo ganho, tudo ganho", dizem os diplomatas. Faz o mesmo o coração, fino diplomata. Ele não recusa, apenas adia. O adiamento, se não é resolvido, é uma derrota da vontade. Só deixes para amanhã o que não é possível hoje...

Tudo isto considerado, o coração resolve:
1) como garantia, fazer diário, todas as noites, algumas palavras; domingo, uma resenha da semana; primeiro domingo do mês, uma resenha do mês, e no fim do ano, uma resenha do ano.
2) Conclusão positiva: examinar cuidadosamente o que devo fazer aqui com o tempo e os meios a isso concedidos. Este ponto será analisado.


Berlim, 31 de dezembro de 1847.

Preciso de afeição. Ofende a minha franqueza ter a aparência de um amigo e não o ser na realidade. A ausência de seriedade me repele decididamente. — Não sei ainda viver entre os homens; mormente entre os meus contemporâneos. Por quê? Porque tu és despótico. Inveja teus iguais. Não, não é isso. Só concedes superioridade àqueles que amas. Necessitas amar para não ser invejoso. E, no entanto, a justiça deve adiantar-se ao amor. A quem fosse reconhecido, darias com alegria, mas não ajudas a subir quem nada te pede. — Deves fazer justiça aos outros. O meio é pensar sempre que cada um te é superior em alguma coisa, e reconhecer-lhe essa vantagem, apagando-te de boa vontade, ao colocá-lo nesse terreno. Interessa-te sinceramente pelos outros, é o meio de inspirar-lhes interesse. Nada de altivez, de dureza, de orgulho. Observa o que cada qual tem de bom, de melhor, e não seu lado fraco. Procura dar prazer, felicidade aos outros; que gostem de estar contigo; a amabilidade é um reflexo do amor.

Sê justo. Isto é, respeita a individualidade de cada um; respeita as suas opiniões, as suas luzes; escuta-os com interesse, consulta-os e não te imponhas. — Sê bom. Procura fazer o bem, esclarecer, interessar, aliviar, ajudar, etc. — Sê flexível. A ninguém peças o que ele não tenha. Considera cada qual como é; não peças amizade ao que só tem espírito, espírito àquele que só tem sobretudo conhecimentos.

Aprende a dobrar-te aos caracteres. É a arte do bem viver. Resigna-te e domina-te. A flexibilidade que vem da bondade e não da astúcia, não é um defeito, é uma qualidade. — Sê sincero. É o que és um pouco exclusivamente. Não sabes dissimular um contentamento. Mas sê sincero em tuas maneiras, isto é, simples. Sê, em vez de parecer. Trata de não parecer mais tolo ou mais zombeteiro do que és. Medida, naturalidade, conveniência, são qualidades importantíssimas; conveniência sobretudo, mas a verdadeira, a que se funda na verdadeira relações das coisas.

Conveniência no estilo, na linguagem,, nas ações, é a proporcionalidade constante com os lugares, os tempos, a idade, o sexo, as circunstâncias, etc. É a expressão do verdadeiro, o tato do justo.


Genebra, 1º de outubro de 1849.

Ontem, domingo, reli e copiei todo o Evangelho de São João. Ele me confirmou na minha opinião de que Jesus não era Trinitário; que devemos crer somente nele, e descobrir a imagem verdadeira do fundador atrás de todas as refrações prismáticas, através das quais ele nos chega mais ou menos alterado. Raio luminoso e celeste caído no meio humano, a palavra de Cristo decompôs-se em cores irisadas e desviou-se em mil direções. A tarefa histórica do cristianismo é, de século em século, despojar-se de uma nova casca, sofrer uma nova metamorfose, espiritualizar sempre mais a sua inteligência de Cristo, a sua inteligência de salvação.

Estou assombrado com a incrível soma de judaísmo de formalismo que subsiste, ainda, dezenove séculos depois de ter o Redentor proclamado que era a letra que matava e que o simbolismo estava morto. A nova religião é tão profunda que nem sequer no presente é compreendida, e tão ousada, que pareceria, neste momento, blasfematória à maioria dos cidadãos. A pessoa de Cristo é o centro dessa revelação; revelação, redenção, vida eterna, divindade, humanidade, propiciação, encarnação, juízo, Satã, céu, inferno, tudo se materializou, se condensou, e apresenta a estranha ironia de ter um sentido profundo e de ser interpretado carnalmente, espécie de moeda falsa em sentido inverso, que vale mais que o valor de troca. A ousadia e a liberdade cristã estão por conquistar-se de novo, é a Igreja que é herética, a Igreja cuja visão é turva e cujo coração é tímido. Queira-se ou não, há uma doutrina esotérica; não que seja ela um jugo, mas uma força das coisas. Há uma revelação relativa; cada ser penetra em Deus tanto quanto Deus penetra nele; e como diz Angelus, creio que os olhos com que vejo a Deus são os mesmos com que Deus me vê. [ 1 ]

Se o cristianismo deseja triunfar do panteísmo, deve absorvê-lo; para os nossos pusilânimes de hoje, Jesus estaria contaminado de um odioso panteísmo, pois confirmou a frase bíblica: Vós sois deuses; e São Paulo também, que diz sermos a raça de Deus.

Ao nosso século é necessária uma nova dogmática, isto é, uma explicação mais profunda da natureza de Cristo e das luzes que projeta no céu e na humanidade.

14 de dezembro de 1849 (oito horas da manhã)

Virgindade viril, tu merecerias pela tua raridade um templo, e se os antigos o esqueceram, bem errados andaram. Aos vinte e oito anos, não ter ainda, como diz Pitágoras, entregue sua força a mulher alguma, ou, como diz Goerres, não ter ainda provado, ou, como diz Moisés, não ter ainda conhecido, ou, como os romancistas franceses, não ter ainda possuído, é um fenômeno, ou antes uma curiosidade, de que nenhum homem de meu conhecimento entre os de minha idade pode oferecer um segundo exemplo. É um bem? É um mal? Uma estupidez? Uma virtude? Muitas vezes debati este problema. Ter dormido em todos os leitos da Europa, desde Upsala a Malta, e de Saint-Malo a Viena, nas cabanas e nos palácios, entre pastoras da Bretanha, e a dois passos das raparigas de Nápoles, e somente conhecer a voluptuosidade em imaginação; ter tido o mais precoce temperamento, ter feito as leituras mais devastadoras; ter encontrado as ocasiões mais sedutoras e isto antes dos vinte anos; curioso até a o crime, ecom mais forte razão curioso do amor, inflamável, sempre errante, por que milagre trago ao lar a minha ignorância de criança?

Muitas são as causas, e várias a meu favor, mas de que transfiro a virtude ao meu bom anjo, ao meu bom eu. — Puber, liber; liber, miser, tal é o resumo de duas cartas, escritas quando em viagem a B... Quem me guardou? Respeito aos outros, sempre tive horror de fazer mal, de levar outrem ao mal; a idéia de corromper-me era insustentável, e a jovem ou a mulher à qual eu não teria feito mal, era então indigna de mim. Esse dilema, jamais pude moralmente resolvê-lo. Sinceridade: cabendo-me dar conselhos a duas jovens irmãs, permaneci puro, para não ser um hipócrita, porque abomino a hipocrisia. Não podendo ter nem a impudência do vício, nem sua dissimulação, não pude ceder. Imaginação: centuplicando a coisa, tanto a sua voluptuosidade quanto o seu remorso, ela sempre me resguardou por medo, ao mesmo tempo que tentava pela sedução.

— Um quarto guardião foi a minha timidez fabulosa, e imbecil até. Jamais pude pronunciar uma palavra desonesta a uma mulher, e me são precisos ainda esforços para não enrubescer quando outros as pronunciam. Corei muito mais vezes pelos outros, em lugar dos outros, do que por mim mesmo; a testemunha é que ficava embaraçada pelo culpado. Essa timidez tola deixa-me ainda arrependimentos: mais lastimo alguns beijos que poderia, deveria mesmo ter dado, em Estocolmo, em Cherburgo e em outros lugares, do que algumas ações condenáveis. Estas recordações de uma voluptuosidade casta me são caras; têm mais perfume para mim do que, sem dúvida, a posse completa, para um libertino. — Um poderoso guardião foi também a minha desconfiança de mim mesmo. Sentia que a fagulha transformar-se-ia em incêndio, que uma vez arremessado o fugir da paixão seria antes para comprimir que para reter. Eu tinha medo de mim próprio e nunca ousei abandonar-me. Recordo-me haver recusado G. que me arrebatava, que eu tinha em meus braços, ambos meio fora de nós mesmos. Receei o tigre da paixão, não ousei arrancar o açamo à besta froz, e deixar-me levar por mim mesmo. Tenho quase pesar disso, sobretudo depois que soube que lhe faziam demasiada honra os meus escrúpulos, os quais evidenciavam excessiva delicadeza. Esmaguei a tentação em vez de extingui-la. Tolice, talvez; não se é completamente homem, enquanto se ignora a mulher. Preferi a ignorância ao remorso; para mim era um sacrifício, que um outro, menos devorado pela necessidade de saber, quase não compreenderá. — Por outro lado, eu me tinha jurado permanecer tão heróico como a mulher pura, que somente dá a sua flor da castidade, sua coroa de virgem, àquele que oferece a grinalda de esposa. Tinha jurado a mim mesmo fazer àquela que conquistasse o meu coração uma delicada e rara oferenda, a virgindade dos meus sentidos, com as primícias de minha alma, um amor grande, completo, sem falha, sem mácula; para poder aceitar sem enrubescer um dom equivalente, para poder abrir toda a minha vida aos seus olhos, e deixá-la submergir em mim, sem que ela encontrasse lodo em minhas recordações, nem rivalidade mesmo em meus sonhos. Se é uma tolice, eu te agradeço, meu Deus. O ideal é também um sonho, mas um sonho que ultrapassa todas as misérias do real. Para um filho de Eva, renunciar ao pomo da ciência é valer mais que sua mãe; mas não fui eu quem o mereceu, foi o meu bom anjo, e foi o meu instinto, foi Deus em mim. Eu, eu desejei morder, foi ele que paralisou meus lábios; eu, eu quis pecar e pequei, foi ele quem me defendeu. Por isso não posso estar orgulhoso, mas comovido, reconhecido e humilde.

Domingo, 7 de abril de 1850.

Muitos pesadelos me assaltaram esta noite, tenho a cabeça um pouco pesada, e levantei tarde. Após a refeição da manhã, explorei cuidadosamente todos os rebentos primaveris, desde a salsa às roseiras, e desde os lilases aos pessegueiros; latadas, mudas, relva, tufos de vegetais, brotos, nada foi esquecido. O ar é muito suave com um pouco de umidade, atmosfera toda vegetal, acariciante e fecunda.

Sinto que a consciência diurna é diferente da consciência noturna, como diz Kerner e a escola dos magnetizadores; nesta sou mais recolhido, menos distraído, mais grave; na outra, os preconceitos, seduções, ilusões do exterior, retomam seu império. É a oposição do mundo interior e do mundo exterior; da concentração e da projeção; do homem religioso e do homem mundano, do homem essencial e do homem móvel; vemos, assim, alternativamente sub specie aeterni et temporis, para falar como Espinosa. Põe-nos a consciência noturna, em presença de Deus e de nós mesmos, numa palavra, da unidade; a consciência diruna coloca-nos de novo em relação com os outros, com o exterior, com a diversidade, em suma.

Consequências: um projeto deve ser examinado sob estas duas luzes; a vida deve comparecer a este duplo tribunal. A consciência tem sua rotação como o planeta, seu lado de sombra onde aparecem as estrelas, o pensamento do infinito, a contemplação; seu lado luminoso onde tudo brilha, onde as cores e os objetos se entrecruzam, esplendem e assombram. A vida completa tem essas duas faces, a alma humana gira em Deus como o planeta no céu, e é a sucessão do infinito e do finito, da totalidade e do pormenor, da contemplação e da ação, da noite e do dia, que é a sua iniciação ascendente. Excusado é deplorar ou censurar uma ou outra tendência, convém harmonizá-las, pois ambas estão nos caminhos divinos, ambas são boas enquanto se entreajudam.

Isto explica-me porque as idéias que me perseguiram ao acordar agora surgem diferentemente algumas horas mais tarde. Estou já mergulhado na dispersão diurna. Essas idéias tinham relação com o casamento. Eis o que me parecia então: tudo o que é indissolúvel só deve ser contraído na plenitude de sua consciência, sub specie aeterni. Conseqüentemente, tudo que passa, considerações de beleza, de orgulho, de vaidade, de riqueza, de vantagens exteriores, deve ser reconhecido, penetrado, afastado como motivo dirigente; cedo ou tarde, o remorso viria.

Enganar ou enganar-se, ceder a uma tentação, arrasta a resultados cruéis. É forçosamente recíproca a felicidade e a encontramos somente quando nos damos.

Um casamento que te fizesse esquecer a vocação e teus deveres; que te impedisse de olhar sempre em ti, que não te melhorasse, em suma, é mau. De nada vale o casamento que te aparecer como uma cadeia, como uma escravidão, como uma opressão. — A escravidão não desaparece a não ser havendo amor, e só o verdadeiro amor, quando é central, e possa ser olhado como eterno; e somente há de terno o que pode crescer, desenvolver-se-se, aumentar sempre.

Não te ofereceria nenhuma felicidade o casamento temporal, o casamento que não fosse uma aspiração infinita, como sobre duas asas; não vale a independência, e te deixaria um incurável mal-estar, um desgosto, uma censura, um sofrimento eterno. O verdadeiro casamento deve ser realmente uma peregrinação, um purgatório, no sentido elevado do dogma católico. Deve ser um caminho para a verdadeiro vida humana; o ponto de vista religioso é o único digno dele. Assim, enquanto não sentires o casamento como uma necessidade para cumprir a tua vocação de homem, ou quando uma certa união te oferecer uma perspectiva diferente, — abstém-te. Uma única coisa é necessária: ser o que se deve ser, desempenhar sua missão e realizar a sua obra.

Na minha inconsistência e no meu desejo de compreender todos os pontos de vista, passo por mil tentações e me abandono a mim mesmo. Assim retorno, após muitas voltas, ao ponto a que chegara tantas vezes. — Dupla felicidade: o ócio que me permite penetrar de novo em mim mesmo; este diário íntimo que me esclarece à vontade, e que posso consultar como uma sibila, porque temos em nós um oráculo sempre pronto, a consciência, que outra coisa não é senão o próprio Deus, em nós.

12 de março de 1851.

Por que tenho vontade de chorar? Ou de dormir? Langor de primavera, carência de afeição. Volto de um passeio por este sol quente de tarde mansa, que penetra pelo corpo. Tudo parece vazio, vão, pobre em nós, quando a natureza fala de amor. Os livros repugnam, a ação faz sorrir de desdém. Somente a música, a poesia, a prece possuem ternura suficiente para corresponder ao secreto desejo. São o ninho de veludo em que a alma dolorida e sensitiva pode repousar sem magoar-se. É dura demais a ciência, a distração demasiado insensível, demasiado veloz o pensamento. Felizes dos que sabem cantar, eles adormecem as suas dores, recolhem as suas lágrimas num prisma de cristal. Meu companheiro de passeio foi para o piano, eu abri o meu diário. Mais rapidamente será ele consolado do que eu.

Será falsa a nossa vida ordinária, ou enganam as suas impressões? Nem uma nem outra.

A primavera é boa, como o inverno. A alma deve temperar-se e endurecer-se, deve também abrir-se e distender-se. Respeita cada necessidade nova que apareça em teu coração, é uma revelação, é a voz da natureza que te desperta para uma nova esfera de existência; é a larva que palpita e pressente a borboleta. Não abafes os teus suspiros, não devores as tuas lágrimas: anunciam uma grandeza desconhecida, ou um tesouro olvidado, ou uma virtude que se afoga e clama por socorro. A dor é boa, porque faz conhecer o bem; o sonho é salutar, porque pressagia uma realidade mais bela; a aspiração é divina, porque profetiza o infinito, e o infinito é Maia, a forma sorridente ou sombria de Deus.

A grandeza de um ser é proporcional às suas necessidades. Dize-me o que desejas e te direi quem és. Contudo, dirás tu, existe algo maior do que a aspiração, é a resignação. É verdade, mas não a resignação passiva e triste que é um enervamento, mas a resignação decidida e serena que é uma força. Uma é privação porque é apenas sofrimento; outra, uma posse, porque é uma esperança. Ora, observa e verás que essa resignação é apenas uma aspiração mais alta. Assim, subsiste a lei.

6 de novembro de 1852.

Sou suscetível ainda de todas as paixões, porque as tenho todas em mim. Como um domador de animais ferozes, tenho-as enjauladas e atadas, mas ouço-as rugirem às vezes. Afoguei mais de um amor nascente. Por quê? Porque com esta segurança profética da intuição moral, eu os sentia pouco viáveis e menos duradouros do que eu. Afoguei-os em proveito da futura afeição definitiva. Os amores dos sentidos, da imaginação, da sensibilidade, eu os penetrei e rejeitei, queria o amor central e profundo. Ainda creio nele, e tanto pior para a honra do sexo feminino, se não tenho razão.

Não quero estas paixões de palha que deslumbram, consomem ou secam; chamo, aguardo e espero ainda o grande, o santo, o grave e sério amor que vive em todas as fibras e em todas as potências da alma. Toda mulher que não o compreende não é digna de mim. E se hei de permanecer só, prefiro levar minha esperança e meu sonho a malcasar minha alma.

26 de dezembro de 1852 (domingo).

Se ataco muitos fragmentos de nossa teologia e de nossa Igreja, faço-o com o fito de chegar melhor a Cristo. Minha filsofia me permite. Ela não apresenta o dilema de religião ou filosofia, porém o da religião compreendida ou religião aceita. Para mim, a filosofia é uma maneira de apreender as coisas, um modo de percepção da realidade. Ela não cria a natureza, o homem, Deus, mas os encontra e procura compreendê-los. A filosofia é a reconstrução ideal da consciência, a consciência que compreende a si mesma, com tudo o que contém.

Ela pode conter uma vida nova, o fato de regeneração e da salvação, a consciência pode ser cristã; a inteligência da consciência cristà é uma parte integrante da filosofia, como a consciência cristã é uma forma capital da consciência religiosa, e a consciência religiosa uma forma essencial da consciência.

29 de julho de 1853 (onze horas e meia da noite).

Esta tarde, fiz uma experiência que se resume nisto: um beijo pode roubar uma alma?

Furtei um, e no refluxo do meu sangue ao coração, senti e pressenti como uma pequenina coisa podia ser uma traição ou decidir um destino.

O movimento, aliás, tinha sido espontâneo e irresistível. Simpatia, sentimento de piedade e de ternura, atração, a face apertada contra os meus lábios, e a face consentiu. O beijo, quase fraternal de início, tornou-se em meio quase apaixonado. O rápido transporte, a metamorfose de um sentimento sob a influência do sexo, o poder de um beijo e sua embriaguez, a espantosa capacidade para a dissimulação na mulher, a presteza do arrependimento, tudo isto me atingiu com a rapidez do pensamento, ao contato da pele acetinada ou antes um segundo após.

E tudo sem amargura, porque sinto que não fiz realmente mal. Antes senti como, as circunstâncias ou os personagens mudando, tal pode ocorrer. Guardo uma encantadora recordação, a de uma emoção elétrica e de um beijo muito terno e muito ingênuo. Não tinha o ardor da febre, mas o perfume da rosa. Inocente, amoroso e vivo, eu não me censuro, e o cercarei de perfumes, na minha memória, como essas raridades que o peregrino, quando volta de suas viagens, coloca entre os seus objetos preciosos.

7 de agosto de 1856.

Publicações... De todas as partes os meus amigos se queixam de mim e me repetem: concentra-te, escreve, produz, faz alguma coisa, liberta-te, pensa numa obra, traz a tua pedra... Infelizmente, unânimes em reclamar alguma coisa, já não concordam eles sobre o que desejariam de mim. Um dicionário, crítica, psicologia, um curso público, versos, história, viagens, etc., aconselham-me todos isto e aquilo, com a recomendação de renunciar ao resto. Ontem, Scherer me dizia: "Quadruplica teus Grains de Mil e faz deles um volume. Isto te será muito agradável, e a nós também. Aí, podes ser diverso e móvel à tua vontade. Era um bom filão, segue-o". — Casa-te e faz o teu volume: tudo gira em redor destas duas exigências, que a mim próprio faço há tanto tempo. Mas escolher, não o soube. E essas duas coisas são uma escolha.

9 de agosto de 1859.

A natureza esquece, e os homens ainda mais; por pouco que nisso consinta o indivíduo, o esquecimento o envolve em breve como uma mortalha. Essa rápida e inexorável expansão da vida universal que cobre, desborda e traga os seres particulares, que apaga a nossa existência e anula a nossa lembrança, é de uma acabrunhante melancolia.

Nascer, agitar-se, desaparecer, eis aí todo o drama efêmero da vida humana. Salvo em alguns corações, e ainda nem sempre em um só, a nossa memória passa como onda sobre a água, como brisa no ar. Se nada é imortal em nós, quão pouco vale esta vida! Como um sonho que vacila e se evapora aos clarões nascentes da alvorada, todo o meu passado e todo o meu presente dissolvem-se em mim e se afastam de minha consciência quando ela reflete sobre si mesma.

Sinto-me a essa hora vazio e despojado como um convalescente que não lembra nada mais. As minhas viagens, leituras, os meus estudos, os meus projetos, e as minhas esperanças, de meu pensamento esvaeceram-se.

É um estado singular. Vão-se todas as minhas faculdades como um manto que se depõe, como o casulo de uma larva; sinto-me transformar, ou melhor, voltar a condições mais elementares; assisto a supressão de minhas roupas. Esqueço mais do que sou esquecido. Entro suavemente no ataúde ainda vivo, como Carlos Quinto. Experimento algo assim como a paz indefinível do aniquilamento e a quietude vaga do Nirvana; sinto passar em mim e diante de mim o rápido rio do tempo, deslizarem as sombras imaplpáveis da vida, e sinto-o com a tranqüilidade cataléptica da Bela no bosque adormecida.

Compreendo a voluptuosidade búdica dos sufis, o Kief dos turcos, o êxtase dos orientais. E, todavia, também sinto que esta voluptuosidade é letífera, que é, como o uso do ópio e do haschisch, um suicídio lento; que, além disso, é inferior ao júbilo da energia, à doçura do amor, à beleza do entusiasmo, ao sagrado sabor do dever cumprido.

Pois esta macia beatitude é ainda uma procura de si mesmo, uma denegação de obediência, um ardil do egoísmo e da preguiça, um modo de evitar o trabalho e dispensar o próximo.

14 de junho de 1860.

Os livros e as mulheres, tive eu acaso outros refúgios? Mas coube-me procurar os livros, e foram as afeições femininas que me procuraram. Que é que eletriza, consola, vivifica, abençoa, inspira, aconselha, encoraja como uma mulher? Que é que alivia, reanima, ampara, cura, acalma o corpo sofredor ou o coração doente, ou o espírito perturbado, como a voz, a mão, o hábito ou o olhar de uma mulher amante? — Quando pensoem tudo o que devemos ao sexo feminino, fico emocionado; quando penso em tudo quanto podemos fazê-lo sofrer, fico perturbado; quando penso em tudo quanto nele dormita e pode florescer sob a influência viril, experimento uma espécie de entusiasmo, sinto que um mundo novo dorme oculto no seio da mulher, e que uma humanidade mais bela, maior, mais heróica do que a nossa poderá nascer, quando o homem for digno de engendrá-la.

É a mulher, a eterna mãe e ama das gerações, que alimenta no homem sua recompensa e seu castigo, sua aflição e sua coroa. Feliz do que chegou a encontrar a mulher forte e pura, entusiasta e corajosa, fiel e santa, a companheira dos seus dias e das suas noites, o apoio da sua juventude e dos anos da velhice, o eco de sua consciência, a auxiliar dos seus trabalhos, o bálsamo das suas penas, a sua prece, o seu conselho, o seu repouso, a sua auréola; esse na mulher tem toda a natureza, esse encarna a sua poesia, fixa a sua inquietação, realiza o seu sonho. O verdadeiro casamento é uma prece, é um culto, é a vida tornada religião, porque é ao mesmo tempo natureza e espírito, contemplação e ação, e participa visivelmente na obra infinita pelo trabalho, pela fecundidade e pela educação, sementeira tríplice do espírito e da vida.

4 de julho de 1860 (dez horas da manhã).

Temos necessidade de amar e de ser amados todos os dias; eu o sentia esta manhã lendo em meu "parque". Não é bom nem feliz viver sozinho; mesmo quando gozamos saúde do corpo e do espírito. Meu coração suspirava por afeição, não uma determinada, mas em geral; minha felicidade não está ainda individualizada, mas tende a personalizar-se mais. As coisas não me satisfazem mais, nem tão pouco as pessoas; mulher alguma tão pouco, mas a mulher encarna a aspiração secreta do que sonha e suspira em mim... Não serei feito senão para a amizade?

Ai-je passé le temps d'aimer?

Amar loucamente, completamente, com embriaguez? Dio lo sa. Mereço-o ainda? Sou um cego? Sou um rebelde? Sou um ingrato? Um ímpio? Um louco? Na verdade, pouco sei. Para as coisas desta ordem repugna-me tomar o bom senso por diretor e por juiz. Sou místico em amor; somente o infinito me tenta. No fundo de mim, tenho somente indulgência, indiferença e piedade. Com meu pavor da ação, estou sempre empenhado em sentir os motivos de abster-me, de renunciar, de abandonar. Ora, estes motivos são sempre os limites, as lacunas, as imperfeições da coisa que se apresentava como finalidade, como objeto a desejar, como desígnio a realizar. Não consinto em entregar-me senão ao ideal que não deixe no coração nem pesar, nem cuidado, nem desejo ou inquietação, porque acalma todas as aspirações. — Ora, nada nem ninguém pode ser o ideal; foi assim que meu instinto encontrou e encontra o meio de libertar-se, de enfastiar-se, desembaraçar-se de todo móvel imperioso, de todo ascendente vencedor, de todo arrebatamento irresistível; e de deixar-me livre, desprovido, como um sectário do grande Lama....

25 de fevereiro de 1861.

A sexualidade terá sido a minha Nêmesis, o meu suplício desde a infância. A minha extraordinária timidez, o meu constrangimento com as mulheres, os meus violentos desejos, os ardores de imaginação, as más leituras na primeira adolescência, depois a eterna desproporção entre a vida sonhada e a vida real, a minha funesta inclinação a separar-me dos gostos, das paixões, dos costumes dos de minha idade e de meu sexo; a atração fatal que eu exerci mais tarde sobre corações delicados e ternos... tudo isso deriva da vergonha primitiva, da idealização do fruto proibido, em suma, de uma falsa noção da sexualidade. Esse erro envenenou a minha vida... Impediu-me de ser um homem, e indiretamente fez-me faltar à minha carreira. — Depois disso, deixai ao acaso o cuidado de criar no espírito da criança a noção do sexo, do pudor e da volúpia!... Inocentemos a natureza; façamo-la amar e respeitar; coloquemos a noção de decência à sombra da honestidade e não sob a do mistério, pelo simples fastio arranquemos à curiosidade o seu aguilhão; e não mascaremos demais o plano da Providência, para não excitar a necessidade de saber ou a necessidade de sentir, para não gerar a suspeita, a tentação ou a vergonha exagerada nos jovens corações que nos são confiados.

A perturbação das funções sexuais, creio, é ademais uma das chagas da nossa geração tão nervosa e tão enervada. Toda a vida física da mulher gira em torno desse centro; e a do homem também, embora com menos evidência. Que há de espantoso? Não é a vida a palavra do universo, e a geração o foco da vida, e o sexo a chave da geração? Estamos, pois, na questão das questões. Quem não pode nem reproduzir-se, nem produzir, já não está vivo. A vontade, o pensamento, a obra, a ação, a palavra, engendram-se em nós pela mesma lei que o ser organizado em sua mãe. Quando perdemos toda força comunicativa, todo estímulo, toda espontaneidade excitante, já não somos machos; quando cessamos de reagir, de assimilar, de atrair, quando somos puramente passivos, de fato estamos mortos...

4 de agosto de 1861.

...Vi saírem da igreja muitas gentis criaturas, e o delicioso sol sobre os leves vestidos agitou-me amorosamente o coração. Subi sozinho a Pressy, pela hora mais quente do dia (duas horas). Tempo magnífico; o Monte Branco tinha aspecto inteiramente novo. O campo era de uma esplêndida majestade. Montanhas e folhagens brincavam no ar azul e embriagavam-se de céu e de alegria... O que suavemente me expandiu após a boa acolhida dos parentes, foram sobretudo as carícias das meninas. Eu tinha sede de ternura e de beijos. E como se o tivesse compreendido, Lulu instintivamente voltava sempre a meu colo. Esses afagos infantis me encantam mais do que ouso dizer, e quando ela me acompanhou na partida até a cerca embaixo, abracei-a quase com efusão, embora com toda inocência. (...) — Com os anos os filósofos tornam-se cada vez mais sensíveis ao encanto da graça e cada vez mais loucos pela beleza, esse resumo simbólico de toda excelência, esse intuitivo sumário de toda perfeição. Aos quarenta anos, terminarei por sentir como os jovens, isto é, por ser amoroso de todas as mulheres, e escravo de todos os olhos amantes. Isso me assusta um pouco. De fato, apesar de tudo, ao encontro de todas as ternas emoções, lança-se o meu coração, como se estivesse impaciente por consumar o seu destino e tornar a pedir a sua parte de juventude e de felicidade.

4 de setembro de 1861.

Para que sou bom agora? Para nada. A única coisa que me interessa são as afeições, são as mulheres. Não trabalho mais, não estudo mais, não ambiciono senão uma mulher de acordo com o meu coração, e todas as moças que passam parecem-me um convite ou um escárnio da felicidade. Amo um pouco todas as mulheres, como se todas tivessem como prenda uma parcela do meu ideal, ou o meu próprio ideal. Cerco-as da minha simpatia como o asilo, o santuário, o refúgio das cores, das alegrias e dos afetos, como a celeste provisão de mansuetude e de bondade sobre a terra. Não me sinto inteiramente bem senão no meio delas; e quando obedeço inteiramente à minha natureza, sentem-se elas tão bem amadas e compreendidas que correspondem à minha benevolência. Eu o vejo bem no campo, na montanha, quando não há nenhum desses olhares escarnecedores e dessas línguas irônicas que superabundantemente fornece a cidade de Calvino. Minha natureza é ser acariciante, infantil, atencioso, solícito, simpático, e abandonar-me à vida coletiva, procurar fazer todos felizes, pessoas e animais, ser benfazejo para todas as vidas, para todos os corações amante. São, contudo, qualidades paternais e conjugais. Não sou, pois, indigno de ser esposo e pai. Que é que me detém nessa vocação? Uma incurável desconfiança do destino, depois a purificação de meu ideal. Não ouso jogar a última carta de minha felicidade, e não encontrei ou não soube encontrar a minha companheira. Fui amado bastante freqüentemente para ser muito delicado em matéria de afeição, e para saber de quantas maneiras se pode sofrer na vida conjugal. Temo, aliás, a Nêmesis que me fará, talvez, desdenhar quando eu estiver apaixonado. E, contudo, só tenho uma aspiração, um desejo.

30 de maio de 1865.

Uma das vantagens da maldade é atrair as vítimas para o seu terreno, onde a luta é bem desigual.

Et gonflé de poisons, il attend les morsures.

Toda serpente fascina a sua presa. Herda a maldade pura esse poder de vertigem concedido à serpente. Entorpece o cândido coração que a vê sem compreendê-la, que a toca sem nela poder crer, e quem em tal problema se precipita como Empédocles no Etna. Non possum capere te, cape me, diz a lenda aristotélica. Cada diminutivo de Belzebu é um abismo. Cada ato demoníaco é um sorvedouro de trevas. A crueldade nativa, a perfídia e a falsidade originais, memso no animal, lançam como clarões no insondável poço da perversidade satânica, que é uma realidade moral.

E, não obstante, um pensamento secreto me diz que o sofisma está no fundo da maldade humana, que a maior parte dos monstros gostam de justificar-se aos seus olhos, e que o primeiro atributo do Maligno é ser o pai da mentira. — Antes de todo crime trata-se de corromper a consciência; e todo malvado bem-sucedido desse modo começa. O ódio pode ser até um assassínio, o odiento nisso quer ver somente uma higiene. É para fazer um bem que realiza o mal, como um cão raivoso morde para libertar-se de sua sede. Prejudicar, mesmo cientemente prejudicando-se a si mesmo, é um grau a mais, transforma-se num frenesi, que por sua vez se aguça tornando-se ferocidade fria. Quando o homem segue, com o transporte da volúpia, os seus instintos de animal feroz ou venenoso, deve parecer ao anjo um delirante, um alienado, que acende a sua própria geena para nela consumir o mundo ou o que do mundo pode atingir a sua cobiça de demônio. A atrocidade recomeça uma nova espiral que mergulha mais ainda nas profundidades da abominação, pois os circuitos do inferno têm a propriedade de não terem término; e o progresso no horrível é ainda mais certo que o progresso no bom.

Parece que a perfeição divina seja um infinito do primeiro grau, mas que a perfeição diabólica seja um infinito de potência desconhecida. Mas não, porque então o verdadeiro Deus seria o mal, e o inferno tragaria a criação. Na fé cristã e persa, o bem deve vencer o mal, talvez mesmo Satã ser redimido, obter a graça, isto é, a ordem divina ser restabelecida em toda parte. Outro ponto de vista seria a desolação irremediável, ao preço da qual o nada pareceria a salvação. O criador seria universal e invariavelmente maldito, e a criação seria apenas um cancro pavoroso condenado ao tormento crescente durante a espantosa duração da eternidade. Esta idéia é de arrepiar os cabelos.

Portanto o mal deve ter um limite. O amor será mais potente que o ódio. Deus salvará a sua glória e a sua glória está na bondade. — Mas é bem certo que a maldade gratuita perturba a alma, porque estremece em nós as grandes linhas da ordem moral, arrebatando subitamente o véu que nos oculta a ação das forças tenebrosas e corrosivas, encarniçadas contra o plano divino. A nossa vista, com isso, é obscurecida e a nossa fé escandalizada.

— Ainda um dos inconvenientes da solidão: ela tudo exagera, ela nos entrega às borboletas azuis. Vae soli! Uerge fortificar-se com as pessoas de coração, com os homens do dever, com os seres exemplares, com as belas almas.

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1 - Johonn Scheffler, chamado Angelus Silesius (1624-1677), autor de poesias místicas.